Estudante de História e de Teologia
ABU Natal
ABU Natal
(CARROLL, Lewis. Alice nos País das Maravilhas. Grifo no original)
- Hã? Aquilo é um coelho branco vestido? E ele está falando que está atrasado? Quero ver isso melhor, vamos segui-lo para vermos aonde ele vai.
-Ele entrou numa toca. Corra, não podemos perdê-lo de vista. A toca é apertada, seria mais fácil para uma criança entrar, mas quero ver o coelho branco com relógio de algibeira. Se você quiser ficar aqui fora, esteja à vontade, não se constranja a me seguir, mas eu vou entrar no País das Maravilhas.
Que bom, pequeno leitor, que você não parou no parágrafo anterior. Seja bem-vindo à toca do coelho. Antes de tudo, quero dizer que aqui é um país maravilhoso, tanto porque é muito bom, quanto pelo fato de ser fantástico. Fantástico, por sua vez, também significa que é muito bom, no entanto, nos remete à idéia de algo que está além de nossa compreensão. Por isso, tome bastante cuidado, as coisas aqui nem sempre funcionam como lá fora. Na maioria das vezes é exatamente o contrário.
Eu sei que estou plagiando o livro de Lewis Carroll. Até confesso que sou apaixonado pelas aventuras de Alice. Mas é exatamente por essa predileção que estou usando essa narrativa para entrarmos no assunto: a relação das crianças com o maravilhoso.
Existem muitas outras histórias em que as crianças se deparam com o maravilhoso. Poderíamos ter entrado num ciclone e chegado a Oz, embora eu pense que esse livro critica, de certa forma, o Cristianismo ou alguns aspectos negativos dele, mas isso é assunto para outro texto. Talvez pudéssemos ter voado até a Terra do Nunca usando Pó-de-Pirlimpimpim, mas tenho medo de altura. Quem sabe não teria sido melhor se tivéssemos entrado no guarda roupa da mansão do velho Digory Kirke, tocado no anel amarelo ou qualquer outra forma de entrar em Nárnia. Não importa, o essencial é que estamos num lugar onde usar lógica é ilógico, estamos no reino do “non-sense”.
Não foi gratuito o fato de Jesus ter dito que a salvação pela Graça só é alcançada por aqueles que fossem como uma criancinha. Usando algumas histórias sobre crianças, pretendo mostrar duas características da relação dos pequeninos com o maravilhoso que devem ser imitadas pelos adultos, já que a vida cristã, em certo sentido, é como uma criança que entrou no País das Maravilhas.
A primeira característica da relação infantil com o maravilhoso é esta: A criança acredita no País das Maravilhas, pois sua forma de ver o mundo ainda não está sedimentada pela dureza dos anos. Sua cabeça ainda está sendo disciplinada (castrada) pela visão racionalista/iluminista do sistema educacional (alguns adultos conseguem resistir e esse processo, como são os casos de alguns autores citados nesse texto).
Os adultos são cartesianos, vêem as coisas de forma geométrica. Para eles, se uma coisa é de um jeito, não pode ser de outro, é, como diria Hamlet, “ser ou não ser”, eis a limitação! Para uma criança, a cadeira pode ser um lugar para sentar e uma espaçonave. Além disso, os adultos precisam de provas empíricas para acreditar em algo. Verdadeiro é tudo aquilo que é sensorial. Os pequeninos lidam melhor com a idéia de que para viver as aventuras da fé não é necessário ver e tocar, mas apenas esperar com uma certeza inexplicável (Hb 11:1).
Uma história que ilustra o quanto são distintas as formas das crianças e adultos verem o maravilhoso é o filme O Labirinto do Fauno, de Guillermo del Toro. A protagonista da narrativa, Ofélia, é uma menina que lê muitos “contos de fadas”. De forma totalmente inesperada, como lhe é peculiar, o maravilhoso aparece. Ela descobre que não é desse mundo, que sua essência pertence a outra realidade; que, há muito tempo, ela fugira do “Reino [...] onde não há mentira nem dor”, ou seja, da presença do seu pai, para a terra dos homens. Quando ela encontra o fauno, este lhe dá três provas que devem ser cumpridas para que ela volte para o “país das maravilhas” dessa história.
Quando ela compartilha com os adultos as maravilhas desse novo país, eles não acreditam nela, pois, como bons adultos, estão mais envolvidos com a dura realidade do mundo (no caso deles, o Franquismo). O mesmo aconteceu com Lúcia, a mais criança dos quatro personagens do livro O Leão, a feiticeira e o guarda-roupa, do C.S. Lewis, que sofreu bastante para convencer os irmãos sobre a existência de Nárnia.
Assim como o filme de Guillermo del Toro, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, é uma obra espanhola em que o protagonista acredita em um mundo que é fantasioso para os outros personagens. Na aventuras quixotescas, é clara a idéia de que os livros corromperam o juízo do fidalgo, pois ele transporta a ficção para a realidade. Em outro extremo, estão o livro O leão, a feiticeira e o guarda-roupa e o Mito da Caverna (Platão, A República), que mostram a existência de outro país, que não é visto pelas pessoas.
Com relação ao filme o Labirinto do Fauno, ficamos em dúvida se o “País das Maravilhas” de Ofélia é real e os adultos estão cegos, ou se tudo não passa de uma forma que a protagonista encontrou de se anestesiar para não sofrer tanto com o horror do Franquismo. O filme não tem a intenção de afirmar que a existência do maravilhoso ou sua inexistência não tenham importância, ou seja, que a única coisa que importa é a forma de olhar. Apenas mostra como são as duas perspectivas, construindo a narrativa de maneira que as duas formas de ver o mundo convivam simultaneamente. Na minha interpretação, talvez por ser cristão, Ofélia volta para casa no final do enredo.
Os cristãos são como Ofélia, sabem que são de outro mundo e estão num caminho duro e cheio de provas, mas loucos para voltarem para a presença do Pai. Além disso, por mais racionais que sejam suas explicações, muitas pessoas não enxergam aquilo que para quem crê é tão visível quanto esse texto. Isso ocorre porque o maravilhoso só se torna crível quando o homem “passa a apreender algo que jamais poderia ser transmitido [por] fatos físicos e deduções lógicas extraídos deles.” (LEWIS, C.S. O Problema do sofrimento).
A segunda característica da relação dos pequeninos com o maravilhoso é que eles não pretendem controlar o País das Maravilhas. Quando um adulto consegue passar pela toca do coelho, ele, muitas vezes, tem a intenção de controlar o novo país. Uma das formas usadas para fazer isso é o conhecimento. Ele cria explicações racionais de quem é Deus e de como Ele age, excluindo os cristãos que pensarem diferente. É difícil para uma pessoa madura deixar Deus sair dos livros de Teologia Sistemática, onde é o lugar Dele.
No texto A surpreendente mística do leão, Ronaldo Cavalcante critica a religião institucionalizada por tentar dominar a fé mediante a imposição das formas corretas de crer, ou seja, a “orto-doxia”. É a domesticação do maravilhoso, pois o que deveria ser “extra-ordinário” se torna ordinariamente controlável. Isso assinala o fim do fascínio diante do transcendente, que passa a ser completamente imanente, conhecível, lógico, quase humano.
Para superar essa ditadura dos cristãos sobre Deus, Ronaldo Cavalcante nos lembra de uma imagem do filme O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, da Disney. No final da história, o senhor Castor diz para a Lúcia, que estava espantada pelo fato de Aslam estar indo embora enquanto uma festa bombava no palácio, que “ele é selvagem, mas é bom”. C.S. Lewis nos ensina nessa metáfora que Cristo, representado na figura do leão, não é passível de domesticação.
Alice, em suas histórias, ilustra bem a relação das crianças e dos adultos com o maravilhoso, pois, às vezes, ela pensa como mulher, noutras vezes, como menina. Quando ela entra no País das Maravilhas ou atravessa o espelho, caminha nesses novos espaços usando o conhecimento adquirido no mundo de onde veio. Nada funciona como ela espera. As coisas só dão certo quando ela, meio intuitivamente, por ser criança, age de acordo com o nonsense. Isso nos ensina que nossa lógica não é suficiente para entendermos Deus, pois o País das Maravilhas está além da nossa compreensão. O que nos resta é buscar compreender o Criador a partir do que Ele mesmo revelou.
Contudo, a Revelação de Deus não é exaustiva. Devemos nos lembrar do que nos ensinaram os reformadores, que entendiam que Deus é, ao mesmo tempo, revelatus (que se revela) e absconditus (que se esconde). Deus se revelou aos homens através do Logos (Jesus), da natureza, da consciência e das Escrituras. No entanto, isso não quer dizer que possamos conhecê-lo completamente. Os adultos que escrevem livros de Teologia Sistemática pensam que o Onisciente é como uma figura geométrica, passível de um conhecimento exaustivo. Rudolf Otto acertou quando afirmou, no livro O Sagrado, que o Criador é o “completamente outro”.
Na primeira aventura de Alice, mais precisamente no capítulo Um chá maluco, o Caxinguelê, tenta contar uma história sem pé nem cabeça para a nossa forma de pensar e a de Alice, que nesse momento usa a lógica dos adultos. A menina interfere o tempo todo, ora afirmando que alguns detalhes da historinha não eram possíveis, ora fazendo perguntas lógicas para ela, mas tolas para o narrador e os outros ouvintes (o Chapeleiro Maluco e a Lebre de Março). De repente, depois que o Caxinguelê afirma que de um poço de melado eram tiradas as mais diversas coisas que começavam com a letra M, a protagonista pergunta por que com essa letra. A Lebre de Março intervém fazendo uma pergunta à menina e nos ensinando como devem ser nossos questionamentos diante do maravilhoso: “por que não?”. Alice se calou.
Atento leitor, você deve pensar que me esqueci do versículo que diz: "Irmãos, não sejais meninos no juízo; na malícia, sim, sede crianças; quanto ao juízo, sede homens amadurecidos" (1Co 14:20). No livro Ortodoxia, Chesterton nos ensina que é próprio da vida cristã buscar equilibrar paradoxos. Esse é um deles, ou seja, ser como um adulto em algumas situações e como uma criança em outras. Minha intenção nessa aventura foi mostrar o que devemos imitar dos pequeninos. Com relação aos momentos em que devemos agir como adultos, ainda estou pesando em escrever Saindo da toca do coelho.
Portanto, são essas as características da relação das crianças com maravilhoso que devemos imitar. Elas estão mais dispostas a crer, pois ainda não se transformaram em cópias de René Descartes, isto é, ainda não partem do pressuposto que devem duvidar de tudo, exceto do cogito. Além disso, não pretendem usurpar o trono do País das Maravilhas, pois reconhecem a limitação do próprio conhecimento. Elas, citando Ronaldo Cavalcante, não evitam “o risco da aventura, preferindo a água da cisterna à cachoeira da mata”.
Que bom, caro leitor, que você chegou até aqui. Espero que não tenha se ofendido quando o chamei de “pequeno” no início da nossa aventura, é que o fato de você ter entrado (e lido até o fim) indica que você tem algo de criança, já que a entrada é muito apertada para alguém totalmente adulto. E como estamos nesse lindo lugar, compartilho com você uma coisa que Alice me ensinou sobre o País das Maravilhas: aqui, “alguma coisa interessante sempre acontece”!
As opiniões expressas no texto são de responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, as posições da ABUB.
11 comentários:
Ler o texto do Flávio é sem dúvida um presente literário!
Irmão que Deus te abençoe cada dia mais nesse lindo dom da escrita!
Abraços
Daniela Frozi
Flávio, usando o "sense", nos mostra, brilhantemente, que também devemos usar o "nonsense".
Ele, mesmo convivendo comigo e me falando suas idéias, consegue sempre me supreender e muito me abençoa com os seus textos.
Deus te abençoe, meu lindo.
Beijos
Jéssica Régis.
Flávio...lê-lo já não me surpreende... continua irrtocável!
Deus te bendiga!
Bjs.
Flávio tem o dom da palavras e o humor necessário para criar com elas uma melodia sem igual! Após ler esse texto, sou estimulada a ler "Dom Quixote", rever "Alice no país das Maravilhas", "Crônicas de Nárnia", assistir "O Labirinto do fauno" e muito mais... os textos desse querido amigo nós atiçam para lançar um segundo olhar, para ruminar sobre coisas que já julgavamos entendidas! Que possamos tal como "Alice" acreditar no Maravilhoso, confiarmos no que parece incrível e vivermos numa dimensão fora do alcance de nossa razão! Parabéns amigo, continue produzindo com esse espírito de excelência! Abraços! Cássia Suranéia
Menino,parabéns!
Eu sempre soube que seus textos seriam bons,já que és um leitor assíduo de tantos livros!
Deus te abençoe!
Parabéns Flávio!
Você tem uma visão aguçada da realidade e nos abençoa com seus pontos de vista. Que Deus continue usando profundamente seus dotes literários para abençoar a muitos. Muito obrigado por compartilhar conosco.
Fraterno abraço!
Carlos Dias.
Esse é o Flávio q conheço!!
Ótimo texto!
Um abração!
Luciana
Recife-PE
Caramba!
Ótimo texto!
PARABÉNS Flávio!
Abração!
Luciana
Recife-PE
Ótimo texto!!
De fato, há certos pontos de vista a respeito de vida cristã ou teologia que beiram o ridículo ao não conseguirem alcançar mais de um palmo à frente do nariz ou sair um pouco que seja das linhas quadriculadas que traçaram. As pessoas que se deixam levar por isso tem uma dificuldade enorme em diferenciar doutrina e parábola, arte e ortodoxia. Resumem a bíblia a uma listas de teoremas matemáticos a serem demonstrados via exegese e fidelidade doutrinária.
O Labirinto do Fauno é um excelente filme! Vê-lo e apreciá-lo são sinais de lucidez e mente livre das "idiotices da objetividade".
Excelente texto Flávio,
Infelizmente só pude ler agora. Você escreve com muito lucidez sobre assuntos difíceis de se expressar. A grande bagagem de sua leitura também se torna notória ao decorrer do texto. O dialógo cristão com a literatura também é bem bacana.
Quanto ao paradoxo exposto no texto, ele é bem complicado, penso que na mesma proporção que a bíblia exalta certas posturas da criança, ela o faz em relação ao idoso. É apenas uma sugestão para o artigo "Saindo da toca do coelho".
“Conforme disse Aristóteles (Retórica, II, 13), a verdade é que os homens vão se tornando menos e menos dogmáticos, à proporção em que envelhecem, reconhecendo cada vez mais a vastidão da verdade” (RUSSELL NORMAN CHAMPLIN)
Grande abraço Flávio,
Carlos
Muito bom, gostei do texto, da visão...
Graça e Paz...
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