4.5.08

O que há de mito na minha missão integral?

Natanael Souza
Estudante de Medicina da UFMG
ABU de Belo Horizonte


Era um dia comum. Saí da faculdade e esperava o meu ônibus com pressa de voltar para casa. Aguardei por alguns minutos até que o letreiro de outro ônibus me surpreendeu. A inscrição amarela indicava o destino: "Shangri-Lá". Me lembrei no momento da ficção de James Hilton (1900-1954) e quase não acreditei. Como poderia haver um ônibus que levasse a Shangri-Lá? Hilton, em Horizontes Perdidos, criou uma cidade repleta de panoramas exuberantes. Nela todos são bem-vindos e a comida é sempre farta. Um cantinho do mundo no qual não há lugar para a tristeza e onde o tempo não tem pressa de acabar com os bons momentos da vida. O escritor sintetizou tão bem os anseios humanos que a sua cidade se transformou num mito procurado por várias expedições.

Continuei por alguns dias pensando sobre aquele fato. Tentei descobrir por que para mim tinha se tornado tão difícil acreditar em um lugar no qual as pessoas pudessem viver sem sofrimento. Quando fui além e percebi que a Shangri-Lá de Hilton era uma boa paráfrase do Reino de Deus, logo concluí que o meu ceticismo se relacionava também à manifestação da Obra do Senhor aqui na terra. Mas o que demonstra essa minha descrença se cresci aprendendo a amar o próximo e desde muito ouço falar sobre missão integral? O problema é que quando eu olho para a minha agenda não consigo enxergar entre as minhas atividades qualquer espaço para servir os outros.

O meu dia-a-dia delata para todos que eu, na realidade, não acredito que Deus quer interferir positivamente no mundo através de mim.

Construí mentalmente uma lista com algumas características que, segundo julguei, Deus ficaria feliz por vê-las fazendo parte da vida das pessoas; justiça, bondade, saúde e consciência ambiental encabeçavam uma seqüencia de benesses que poderiam bem ser chamadas de “atributos do Reino de Deus”. Logo concluí que a expansão desse Reino passa obrigatoriamente pela promoção de cada um dos seus atributos, e que, sendo assim, às vezes é mais fácil participar da Missio Dei me engajando com um projeto social ou com uma ONG que defende os direitos humanos, do que sendo apenas um freqüentador assíduo dos cultos de domingo. A perspectiva bíblica de missão está totalmente alicerçada no amor, e, como nos ensina Dostoiévski “amar uma pessoa significa vê-la como Deus pretendia que ela fosse”. O que eu preciso, então, é olhar para o mundo com os olhos de Deus, e, assim, me tornar um canal que faça transbordar a integridade do evangelho na vida das pessoas.

Alguns dias depois, fui conhecer Shangri-Lá. O caminho para o bairro é como o que leva a quase todas as periferias. Gradualmente as casas vão perdendo a pintura e o reboco. As ruas pavimentadas se despedem pela janela e um balançar diferente faz tremer o ônibus, os passageiros, a alma. “Nesse último ano fomos assaltados três vezes” reclama o cobrador. A Shangri-Lá que eu encontrei não se parece muito com a fictícia. Lá não há nem serviços básicos como rede de recolhimento de esgoto. Parei para conversar com alguns senhores e, enquanto um deles fumava um vagaroso cigarro e me contava que não sabia escrever nem o próprio nome, um outro caminhou até um bar próximo e logo voltou trazendo consigo um copo de bebida alcoólica. Em pouco tempo discutimos sobre segurança, saúde, educação e muitas prioridades que a desigualdade social insiste em lhes negar. Por fim, um dos senhores concluiu a nossa conversa dizendo que não votava há cinco anos, e que também não pretendia votar mais. “Os políticos só governam para si mesmos”, ele sibilou em tom de tristeza.

Fiquei pouco tempo na minha Shangri-Lá, mas foi o bastante para se ver muita angústia e desesperança. Voltei para casa pensando em até quando, como diz Romanos, a criação aguardará com ardente expectativa a manifestação dos filhos de Deus. E minha mente me questionava: como posso interferir nessa situação? Há alguma pequena coisa que eu possa fazer para mudar o mundo? Fiquei feliz por lembrar que o Reino dos Céus é semelhante a uma também pequena semente de mostarda que um homem plantou no seu campo e que produziu a maior de todas as hortaliças. Ainda dentro do ônibus ouvi Marisa Monte cantando Vilarejo e terminei minha viagem tentando sonhar “sonhos que semeiem mundo real”.

4 comentários:

Anônimo disse...

Sua Shangri-La são como os meus jardins: entre os professores da Rede Municipal de Ensino se diz que quando uma escola fica num jardim, não vá pra lá: a escola não tem flores só espinhos. E não faltam exemplos: Jardim Felicidade, Jardim Filadélfia e o meu próprio Jardim Vitória, onde trabalho.

Dá muito trabalho mesmo fazer missão integral. Tem um conhecido meu que diz que o conceito de missão integral é falso e que a igreja é usada como instrumento de pacificação política. Ele tem razão, se a gente só pensa e fala em missão integral e como não suja nossas mãos cristãs na poeira de Shangri-La e no sangue derramado nos Jardins.

Grande texto, Tael. Parabéns. ;-) Espero que não nos traga apenas à reflexão, mas à ação, que reflete nosso amor por Deus e ao próximo.

Abraços.

Anônimo disse...

Tael, parabéns pelo texto. Ele me levou a refletir um pouco mais sobre o assunto! Muitas coisas me incomodam sobre a Missão Integral, primeiramente sua compreensão! Mas não sei se tenho entendido certo ou errado até agora, mas tenho procurado fazer a Missão Integral em pequenas coisas, pois para as grandes sempre tenho justificativas por não fazê-las, então tenho me aproximado das pessoas (ainda que poucas)para serví-las, oferecendo minha amizade sejam quais forem as possibilidades de abertura religiosa, tento auxiliá-las em suas necessidades, sejam elas físicas, intelectuais ou espirituais.
Um grande abraço!

Roberta Nogueira disse...

Lembrei muito desse texto, Tael, quando li a seguinte reflexão na Revista Ultimato: "As Igrejas Históricas falam sobre missão integral, e as igrejas entre os pobres fazem missão integral". Temos muito o que discutir sobre o assunto mas nossa prática não pode estar tão distante das nossas ações.
Obrigada pela reflexão!

Bjuu

Anônimo disse...

Que belo texto e afetuoso Shangri-La!
Nossa missão é assim inserida em uma malha social permeada por desigualdades. Precisamos de estudantes e jovens que consigam VER e se AFETAR pela realidade social do Brasil. E que a esperança que vive em nós possa nos direcionar para a Missão de Cristo que é inteira ou integral e não em partes ou refinada....
Grande abraço
Daniela S Frozi